por Carol Mennocchi - Coordenadora do Projeto Bibliotecas da Escola Viva
“Eu queria fazer parte das árvores como os pássaros fazem. Eu queria fazer parte do orvalho como as pedras fazem. Eu só não queria significar. Porque significar limita a imaginação. E com pouca imaginação eu não poderia fazer parte de uma árvore. Como os pássaros fazem. Então a razão me falou: o homem não pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem. Porque o homem não se transfigura senão pelas palavras. E era isso mesmo.” (Manoel de Barros)
Uma biblioteca fecundada por um quintal…
Tamanha insanidade desta escola. Uma biblioteca mesclada a um chão de terra, circundada por árvores entrelaçadas, com incisivos raios de sol rabiscando desenhos pelos pisos, amoras pisoteadas por pés descalços, cantinhos secretos de refúgio, enigmas pendurados pelos galhos e ainda uma correria frenética de gente sabida brincando por ali?
Uma esquina transparente de onde se observa o coelho na toca, a minhoca no buraco, as formigas enfileiradas, e tudo ainda bordado pelo voo dos passarinhos que por ali constroem seus ninhos, todos em comunhão entrelaçada.
Um quintal acolhendo e esculpindo uma falange de seres brincantes a desbravar odisseias e peripécias?
Qual o sentido, diante deste pulverizado mundo contemporâneo, em amalgamar brincadeira, quintal e literatura ?
Sigmund Freud, em um de seus ensaios (O escritor e a fantasia, 1908), nos convida a refletir:
"Não deveríamos buscar já na infância os primeiros traços de atividade criativa? A ocupação mais querida e mais intensa da criança é a brincadeira. Talvez possamos dizer que toda criança, ao brincar, se comporta como um criador literário, pois constrói para si um mundo próprio, ou, mais exatamente, arranja as coisas de seu mundo numa ordem nova, do seu agrado. Seria errado, portanto, pensar que ela não toma a sério esse mundo; pelo contrário, ela toma sua brincadeira muito a sério, nela gasta grandes montantes de afeto. O oposto da brincadeira não é a seriedade, mas sim, a realidade”.
É justamente nesta fabulação, na poética do imaginário e do devaneio, onde o quintal e a biblioteca se aglutinam. O rizoma de hipóteses criativas que acontece em uma brincadeira compõe o mesmo amálgama dos desdobramentos catalisados pela literatura.
Em nosso quintal de terra batida e pedriscos, nossas crianças são entendidas como seres potentes e capazes. Sua curiosidade inata é o combustível que norteia seu aprendizado, pois é através desses olhos faiscantes que ela experimenta, absorve e constrói seu conhecimento sobre o mundo. Cada cantinho, dobra ou fresta é um estímulo para a inteligência. É bem difícil ser inteligente dentro de um elevador, por exemplo, onde precisamos apenas apertar um botão, portanto, que venha o inusitado! A terra que vira lama, a folha que vira piso, a lata que vira carro, o quintal que vira livro!
A literatura habita esse lugar de devaneios e possibilidades, de ética e estética, de dentros e foras. A literatura e o brincar oferecem organicamente experiências em sociedade, observação de mundo, aprendizados em comunidade, pois são lugares de verdadeira empatia.
Torna-se óbvia, portanto, a nossa escolha por envidraçar as narrativas em absoluta comunhão com nosso quintal. O pedagogo italiano Loris Malaguzzi nos justifica quando afirma:
“Valorizamos o espaço devido a seu poder de organizar, de promover relacionamentos agradáveis entre pessoas de diferentes idades, de criar um ambiente atraente, de oferecer mudanças, de promover escolhas e atividades e a seu potencial para iniciar toda a espécie de aprendizado social, afetivo e cognitivo. Tudo isso contribui para uma sensação de bem-estar e segurança nas crianças. Também pensamos que o espaço deve ser uma espécie de aquário que espelhe as ideias, os valores, as atitudes e a cultura das pessoas que vivem nele".
Nossa nova biblioteca foi desenhada com essa imensa gentileza poética. No lindo projeto da arquiteta Juliana Fiorini da Verso Arquitetura, os livros estão ao alcance das mãos das crianças atestando respeito às suas escolhas e pesquisas. A incidência de luz natural por todo ambiente permite transparência, reflexos e texturas. Os materiais de acabamento foram selecionados em sua absoluta integridade, assim madeira, ferro, telha e vidros hospedam o acervo garantindo o livro como protagonista. Todo mobiliário sugere o acolhimento e a versatilidade que permeia nosso projeto de formação de leitores. A delicada estante de vergalhões se compõe no percurso narrativo da ocupação do espaço, ora recebendo um objeto, ora emoldurando um título novo e algumas tantas vezes oferecendo o vazio, o silêncio, a hipótese.
O arquiteto Le Corbusier disse certa vez: "Se você cria uma casa com pedra, madeira e concreto, isso é apenas um edifício; se você toca meu coração, isso é arquitetura". É desta forma que entendemos o espaço na Escola Viva, como ambientes de afeto, criativos, instigantes e plenamente alinhados ao nosso projeto político pedagógico.
Nossa biblioteca agora se esparrama e toca o nosso quintal. E, sim, algumas vezes a terra será a nossa contadora de histórias, as sementes vão nos invadir; em outras, a bola vai dar rasantes ou a gargalhada vai interromper o “Era uma vez”. Há quem diga que passarinhos farão ninhos em nosso teto sem forro. Neste momento, devemos desfrutar do conto de Valter Hugo Mãe e proclamar em voz alta:
“As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos ignorantes e dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam canções ou trombetas a cada instante. E há invariavelmente quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé.“
Assista ao vídeo e conheça, 'de perto', a nova Biblioteca da Escola Viva.
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