Na foto a monitora pedagógica Keite de Souza que tem o costume de embelezar a escola com longas tranças soltas e twists.
por Paula de Oliveira Cassimiro -professora polivalente do 3o ano, professora de Jogos Teatrais do 5o ano e participante do Comitê Antirracista da Escola Viva.
“Na minha história a Rapunzel tem dread
Ela é negra e é Rastafari
Não precisa de um príncipe pra se salvar
Ela é empoderada e pode tudo conquistar
O seu cabelo dread tinha força e poder
Sua beleza africana não tinha o que dizer
Essa história eu inventei porque não vi princesa assim
Só me mostraram uma, ai isso não dá pra mim
(…)
Estou muito feliz de ver a história acontecer
Crie uma princesa que pareça com você”
(Letra da música Minha Rapunzel tem dread do ano de 2016, da artista Mc Soffia)
Multicoloridos, raspados, encaracolados, repicados, presos e soltos, muitos são os cabelos que vemos nas ruas. Eles refletem não apenas uma individualidade, mas também uma pressão estética imposta pela mídia e a indústria cosmética. Isso vale principalmente para o cabelo crespo, o mais comum entre pessoas negras, e alvo de preconceitos que contribuem terrivelmente para uma autopercepção depreciativa das pessoas que o possuem.
Trata-se de um processo iniciado pelos escravizadores que, além dos castigos físicos, impuseram a ideia de “quebrar a alma” do negro, ou seja, fazer com que ele rejeitasse a própria aparência, incluindo o cabelo crespo. Prova disso é que, já no embarque forçado ao Brasil, os cabelos dos escravizados eram raspados, eliminando penteados que definiam identidades pessoais e culturais de diferentes povos ou mesmo diferenças etárias, de gênero e de função social de um mesmo povo.
Nas histórias que chegaram a nós, aparecem muitos relatos do período de escravização das Américas em que o cabelo crespo foi utilizado como um recurso de sobrevivência para alguns indivíduos e seus grupos familiares.
No contexto norte-americano, há registros de mulheres escravizadas que esconderam sementes e grãos nas suas tranças. No Brasil, nas regiões das Minas Gerais, a partir do século XVIII, a tradição oral exalta a figura de Chico Rei. Segundo as narrativas, ele nasceu como rei Galanga e foi trazido escravizado do Congo para trabalhar nas minas da atual cidade de Ouro Preto, escondendo em seu volumoso cabelo crespo parte das pequenas pepitas e do metal em pó que recolhia. Assim, acumulou o valor necessário para comprar a sua alforria e a de outros escravizados e, depois, a própria mina onde trabalhava - hoje, um ponto turístico de Ouro Preto.
Histórias de resistência à parte, o cabelo crespo continuou sendo visto como uma característica abjeta do negro, recebendo a alcunha de “duro” e “ruim”, como se fosse uma representação física da suposta selvageria e indocibilidade do seu povo.
Não por acaso, os escravizadores avaliavam os cabelos com textura e curvatura mais próximas à dos seus cabelos como critério para escolher os escravos e as escravas que trabalhavam dentro de suas casas ou como mensageiros de rua. Este entendimento do cabelo “menos crespo” - como o de melhor aparência e maior aceitação - tornou-se a semente da busca pelo alisamento no cabelo das pessoas negras.
Desde aquela época até a década de 1960, os “cuidados” com o cabelo crespo incluíam, basicamente, o alisamento químico, através de “produtos de beleza”, e o alisamento mecânico, com o uso de instrumentos que remetem às torturas físicas dos escravizados, como o pente de ferro quente, responsável por tantas queimaduras no couro cabeludo de pessoas negras.
Esses produtos e técnicas não eram apenas uma forma dos afrodescendentes atenderem seus gostos estéticos, mesmo que cedendo à pressão dos padrões vigentes, mas, principalmente, um recurso necessário para terem mais chances de conseguir um emprego ou se protegerem da violência da sociedade e do aparelho repressivo do Estado.
A consequência é um sofrimento psíquico que marca profundamente as subjetividades, o que, por si só, é extremamente danoso para o indivíduo.
A resistência a esse estado de coisas e a situação atual são o tema da continuação do nosso artigo, na próxima quinta-feira, 16/11.
Até lá!
Este texto baseou-se em duas produções intelectuais de relevância: “CABELO IMPORTA: os significados do cabelo crespo/cacheado para mulheres negras que passaram pela transição capilar”, escrito por Anita Maria Pequeno Soares na sua dissertação de mestrado na área de sociologia para a Universidade de Pernambuco (UFPE), em 2018; e o artigo “Alisando o nosso cabelo”, de 2005, da escritora, professora universitária e ativista política norte americana Bell Hooks, que recentemente nos deixou. A citação - de Minha Rapunzel tem dread - que abre o texto é um RAP da brasileira MC Soffia, que hoje tem 19 anos, mas o compôs quando tinha por volta dos 11 anos.
“Fazer a cabeça” é uma expressão utilizada para a iniciação nas tradições do candomblé. Este processo ritualístico procura fazer a pessoa renascer e traçar um novo caminho de vida na relação com os valores desta religião. Para muitos negros brasileiros contemporâneos, é uma forma de revisitar e curar as dores geradas pelo racismo estrutural. Ao refletir sobre o cabelo crespo, pretendemos instigar novos e mais respeitosos pensamentos sobre este tipo de cabelo e o povo que o porta.
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