por Francisco Ferreira - Diretor Pedagógico da Escola Viva
Em uma palestra realizada em 2011 aqui na Escola Viva, o professor e psicoterapeuta João Augusto Pompéia, mais conhecido como Guto Pompéia, começou fazendo uma provocação a respeito do título da sua apresentação, Manual de instrução para o uso da liberdade: liberdade precisa de manual? Precisamos de instruções detalhadas sobre como utilizá-la?
O objetivo da palestra era problematizar uma ideia de liberdade bastante difundida que a define como oposta a qualquer tipo de restrição e, como decorrência, ressaltar que ela não é um conceito absoluto.
Para isso, ele levantou outra questão: vocês sabem por que é fácil nos perdermos no deserto? Diante de um certo espanto por parte da audiência, ele mesmo respondeu: porque não temos limites.
E passou a elaborar a ideia de que limite não é necessariamente algo restritivo, mas é especialmente aquilo que nos dá contorno, que nos oferece referências. E que isto é fundamental na constituição da nossa identidade. Sem limites, sem referências, não somos nada, somos algo difuso e amorfo.
No processo educativo, a construção da autonomia está intrinsecamente ligada à elaboração dos princípios e valores que governam as nossas escolhas e a forma como essas escolhas impactam a nossa coletividade. E as referências para a criança e o jovem são fornecidas pelos adultos.
Cabe aos educadores, seja no contexto escolar, seja no ambiente familiar, ter a firmeza necessária para indicar o que está envolvido em cada decisão que tomamos e quais são as consequências. Não apenas para nós individualmente, mas para todas as pessoas que são impactadas, direta ou indiretamente.
Quando antecipamos que os riscos são altos demais em determinada escolha, não há negociação possível: a resposta é não!
Dizer não nessas situações significa cuidar, significa não abandonar a criança ou o jovem à própria sorte. Entretanto, muitos pais e muitas mães têm dificuldade em exercer esse papel de marcar de forma clara uma posição que não atende ao desejo da criança ou do jovem. Por que isso acontece?
Por que esta questão do limite se tornou algo tão presente nos dias de hoje e tem exigido cada vez mais atenção e foco por parte de educadores e educadoras?
Essencialmente porque há, no seio das famílias, dois movimentos na formação de filhos e filhas que geram uma crise de valores e uma dificuldade na constituição de um sujeito autônomo.
Um desses movimentos é a hiperidealização da criança ou do jovem, que se manifesta como uma atitude de exacerbar características positivas e minimizar as negativas, o que faz com que os aspectos indicadores de problemas deixem de ser analisados e enfrentados, ou ainda uma tendência de desculpar comportamentos que são claramente ofensivos, agressivos ou preconceituosos no contexto social. Um outro efeito da hiper idealização é tratar as crianças ou os jovens como se fossem adultos, como se já pudessem decidir e fazer tudo de forma autônoma. Em muitos casos, as famílias dão muita liberdade para pessoas em desenvolvimento que não conseguem ainda dar conta de toda a complexidade da vida. Sem dúvida, é importante fomentar um espaço de escuta e de exercício de escolha, mas sempre com contorno.
O outro movimento é o da proteção excessiva, que tem como objetivo evitar sentimentos de sofrimento ou frustração.
A consequência é que vamos formando crianças e jovens que não sabem lidar com revezes, não conseguem administrar a dor e não aprendem a interagir com opiniões e perspectivas diferentes das suas, o que, no limite, pode gerar uma total falta de senso de empatia e de solidariedade.
Precisamos urgentemente resgatar a noção de que a liberdade de escolha pressupõe um repertório amplo de experiências. O nosso crescimento é feito da capacidade de lidar com os elementos favoráveis e adversos da nossa jornada e, nesse processo, formar as referências que orientam a nossa conduta e os efeitos que ela tem sobre a coletividade.
Neste sentido, entender o limite como algo necessário e produtivo (e não necessariamente como algo restritivo) é fundamental na educação de crianças e jovens. Aprender a dizer não em determinadas situações ou envolver a criança e o jovem na análise das variáveis e nas consequências das suas escolhas é o que vai fazer com que formemos pessoas éticas e socialmente responsáveis.
Este é um dos maiores desafios que temos como educadores (na escola e na famílias) nos dias de hoje.
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