Sonia Muhringer Tokitaka, Coordenadora do Núcleo de Sustentabilidade
Texto reflexivo desenvolvido com base nas trocas construídas na Residência sobre Sustentabilidade na Escola Parque.
“Somos instigados, forçados ou induzidos a comprar e gastar – a gastar o que temos e o que não temos, mas esperamos ganhar no futuro. A menos que isso passe por uma mudança radical, são mínimas as chances de dissidência efetiva e de libertação dos ditames do mercado. As possibilidades em contrário são esmagadoras.
Nada menos que uma “revolução cultural” pode funcionar. Embora os poderes do atual sistema educacional pareçam limitados, e ele próprio seja cada vez mais submetido ao jogo consumista, ainda tem poderes de transformação suficientes para ser considerado um dos fatores promissores para essa revolução”
(Zygmunt Bauman)
Em 2019, no dia 29 de julho, a organização internacional de pesquisa, Global Footprint Network, comunicou que a Terra entrou no “cheque especial”. Ou seja, a partir desse momento, consumimos mais do que o planeta consegue regenerar em um ano. Nessa situação de sobrecarga ou déficit ecológico mundial, diminui o capital natural do qual dependem as condições de vida das futuras gerações do ser humano e de tantas outras espécies vivas.
Estamos atingindo essa marca cada vez mais cedo. Ano a ano, a população mundial consome mais terras agriculturáveis, áreas de pesca, pastagens e florestas do que o realmente disponível.
Dia de sobrecarga da Terra
A data é calculada considerando o número de dias exigido da biocapacidade¹ do planeta para atender à Pegada Ecológica da população humana, os demais dias restantes representam a sobrecarga. O cálculo, feito também para os países, estima qual seria essa data, caso toda a população mundial consumisse como essa nação. Soubemos assim que, considerando o Brasil, a data cairia no dia 31 de julho, apenas dois dias depois.
A pesquisa aponta ainda que, em muitos países, houve aumento no nível de consumo. Já aqui no Brasil uma acentuada queda na biocapacidade pressionou a exploração dos recursos, fato ainda mais preocupante no contexto da atual política e governança ambiental.
Sabemos que os padrões de consumo da população planetária, ou mesmo de um país, não podem ser generalizados, dadas as enormes diferenças entre eles e os segmentos que cada um comporta, mas esse dado relativo permite comparações importantes. A publicação dos dados traz novamente para a pauta de discussões a questão dos distintos modos de vida, da concentração de renda e desigualdade social vergonhosas. Do ponto de vista de demandas por recursos ambientais e áreas para liberação de resíduos, já sabemos que a imensa maioria da população pobre sustenta o consumo e o padrão de vida de uma minoria.
Em nossas escolas, temos problematizado os modos de vida e seus condicionantes – culturais, políticos, históricos, econômicos – bem como o impacto que representam sobre os sistemas de sustentação da vida na Terra e o que significam do ponto de vista da justiça social e ambiental. Apresentamos outras referências, especialmente por meio do contato com outras culturas, outros lugares, outros saberes, outras maneiras de viver e se relacionar com a natureza e com as pessoas, acreditando na potência dessas experiências para ampliar pontos de vista e promover mudanças em quem delas participa.
Não por acaso, reconhecemos a importância do diálogo entre diferentes saberes para a construção de modos de vida mais sustentáveis e o destacamos como um dos princípios comuns da educação para a sustentabilidade nas escolas do grupo Critique.
Uma reflexão que tenho feito – realimentada por discussões que tivemos durante a residência pedagógica no Rio de Janeiro em junho de 2019 e potencializada pelos dados citados no início – é o quanto conseguimos produzir de mudanças de percepção e valores em nossas equipes e alunos.
Certamente eles são impactados pelas experiências, mas a sensibilização tem período de validade e se esgota? Ou permanece? Não temos indicadores para tal avaliação, mas, se reconhecemos a potência do contato, como ampliar oportunidades e tempos para convivências com o diverso? Como as reflexões geradas nessas situações podem transformar-se em ação? Como a sensibilização pode avançar para um estágio de corresponsabilidade pela solução de problemas?
Com a intenção de contribuir para uma reflexão, entendo que um dos nossos desafios esteja no campo da aprendizagem social e nas possibilidades que oferecemos em nossas escolas para que ela aconteça de forma mais abrangente e contínua.
“O objetivo da aprendizagem social é contribuir para o diálogo e intervenção conjunta de atores locais na realidade”, pressupõe a importância dos “espaços de diálogo e aprendizagem coletiva como estratégicos para ampliar a participação e a mobilização de saberes – técnicos, acadêmicos políticos, sociais, culturais, de histórias de vida – em uma gestão do conhecimento em que todos aprendem com todos” (Sulaiman, 2018)
Promovida em vários processos que envolvem participação e colaboração de diferentes atores públicos no enfrentamento de problemas relacionados à sustentabilidade (Bacci, Jacobi, Santos, 2013), a aprendizagem social possui ferramentas e metodologias interessantes, conteúdos que habitualmente não fazem parte de nossa formação, mas que merecem atenção.
Nessa perspectiva de ampliação das oportunidades para aprendizagem social, talvez nossas cidades sejam parte da solução. O espaço onde a atuação seja possível com continuidade e resultados observáveis.
Vivemos nelas e, quase nunca, as conhecemos bem. Elas nos oferecem desafios socioambientais de muitas ordens, oportunidades para ampliar a ecologia de saberes com novos diálogos em jogo, possibilidades de novas parcerias e chances de participação cidadã.
Inúmeras experiências de grupos e movimentos de nossas cidades têm procurado formas mais justas e sustentáveis de viver. A potência das periferias, quase sempre percebidas pelos problemas, também precisam ser reconhecidas pela criatividade, expressividade cultural, ideias inovadoras, vínculos comunitários e de solidariedade.
Nossas cidades nos convidam a olhar, pensar e agir para além dos territórios que ocupamos e circulamos, a transpor as fronteiras que criamos.
Abrem-se possibilidades de rompermos a bolha de homogeneidade social onde nossas escolas e seus públicos estão circunscritos para construirmos pontes entre elas, instituições, territórios populares e outras comunidades. Pontes a partir de interações mais permanentes, corresponsabilidade em projetos de intervenção e desafios comuns. Desnecessário argumentar a favor da potencialidade desse convívio.
Finalizo com um relato de Riccardo Mazzeo sobre uma conversa de Saramago a respeito da crise econômica e da questão dos imigrantes europeus, mas que cabe perfeitamente para a crise socioambiental. Vale nossa reflexão.
“….recordei o que José Saramago disse a alguns amigos sobre a crise econômica poucos dias antes de falecer. Ele afirmou que todos nós, governos e cidadãos, sabemos o que é necessário para sair da crise, mas se dispor a fazê-lo não é nada fácil. Não nos inclinamos a dar esse passo porque, para mudarmos nossa vida, teríamos que mudar nossa maneira de viver, e isso é algo que geralmente pedimos aos outros que façam, não a nós mesmos. Para Saramago, a prioridade absoluta é o ser humano, o outro que é o mesmo que eu e tem direito de dizer: ’Eu’”.
(Riccardo Mazzeo)
Referências Bibliográficas
BACCI, D. C; JACOBI, P. D; Santos, V. M. N. Aprendizagem Social nas Práticas Colaborativas: exemplos de ferramentas participativas envolvendo diferentes atores sociais. In: ALEXANDRIA, Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, v.6, n.3, p. 227-243, novembro 2013.
Bauman, Z. Sobre Educação e Juventude – Conversas com Riccardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013
WWF Internacional.Planeta Vivo – Relatório 2010 [recurso eletrônico].
Sulaiman, S.N e Jacobi,P.R (ogs) Melhor prevenir: Olhares e saberes para a redução de risco de desastre [recurso eletrônico]. São Paulo: IEE-USP, 2018.
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¹A Biocapacidade avalia o montante de terra e água, biologicamente produtivo, para prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza. WWF – Planeta Vivo – Relatório 2010